A SORTE GRANDE
por João Gobern
A simplicidade é um talento, mais trabalhoso do que parece. O humor é um dom. A capacidade de contar uma – boa – história em menos de três minutos é algo que nos deve deixar gratos, numa época em que tantas “canções” nos causam uma estranha e amarga sensação de vazio. Juntar todos os atributos referidos permite reconhecer, e saudar, uma artista. Como Maria Ana Bobone. Que, nesta investida – inesperada mas incisiva, quase insólita para quem a segue há muitos anos e tantos discos, mas muito impressiva –, demonstra, sem precisar de recorrer a academismos e explicações, as diferenças essenciais entre o leve e o leviano, entre a graça e a graçola, entre um enredo libertador e uma rede sem saídas.
Azar O Teu!, creio, só é possível com o auxílio do tempo e da experiência, trazendo-nos uma criadora e cantora sem medo do risco e da diferença. A densidade rigorosa a que nos habituou e que lhe vale um lugar próprio na música feita em Portugal está ausente desta aventura que, como é moda dizer-se agora, parece levá-la para “fora da zona de conforto”. Mas será exactamente assim? Até num episódio comum a tantas vidas podem descobrir-se, sem esforços rebuscados, várias camadas de “leitura”. A cada um a sua. Sem que isso implique teorizar ou, por outro lado, banalizar uma relação, que nos é apresentada e sumarizada, insisto, com simplicidade e humor, contada numa boa história. Atente-se, ainda assim, no cuidado instrumental, na eficácia do arranjo, no apelo natural da melodia e do refrão. Isto porque não vale a pena regressar ao que se mantém inalterado e incólume desde sempre: a excelência singular de uma voz.
Atenção: não é uma raspadinha nem uma lotaria, porque, com Maria Ana Bobone, sabemos que há “números” de que não prescinde e outros, de jogo viciado, a que não recorre. Ou seja, o único azar aqui presente é mesmo o “dele”, o amorfo comodista presente no “elenco” e que acorda demasiado tarde – mas, por favor, não culpem o Benfica… Para todos os outros, para nós, esta surpresa vale mesmo como uma sorte grande.
Simplicity is a talent, harder than it seems. Humor is a gift. The ability to tell a – good – story in less than three minutes is something we should be grateful for, at a time when so many “songs” leave us with a strange and bitter feeling of emptiness. Bringing together all the attributes mentioned allows us to recognise and praise an artist. Like Maria Ana Bobone. That, in this venture – unexpected but incisive, almost unusual for those who have followed her for many years and so many albums, but very impressive –, demonstrates, without needing to resort to academicism and explanations, the essential differences between the light and the frivolous, between humour and plain jokes, between a liberating plot and a network with no exits.
Azar O Teu!, I believe, is only possible with the help of time and experience, bringing us a creator and singer without fear of risk and difference. The rigorous density to which we are accustomed and which earns her her own place in music made in Portugal is absent from this adventure which, as it is now fashionable to say, seems to take her “outside the comfort zone”. But is it exactly so? Even in an episode common to so many lives, several layers of “reading” can be discovered, without much effort. To each person their own. Without this implying theorising or, on the other hand, trivializing a relationship, which is presented and summarized to us, I insist, with simplicity and humor, told in a good story. Pay attention, however, to the instrumental care, the effectiveness of the arrangement, the natural appeal of the melody and chorus. This is because it is not worth returning to what has always remained unchanged and untouched: the singular excellence of a voice.
Attention: it is not a scratch card or a lottery, because, with Maria Ana Bobone, we know that there are “numbers” that she cannot do without and others, from a rigged game , that she does not resort to. In other words, the only bad luck here is “his”, the amorphous self-indulgent member of the “cast” who wakes up too late – but please, don’t blame Benfica… For everyone else, for us, this surprise is worth a jackpot.